quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

VELUDO


Veludo
                                                 Luís Guimarães
Eu tive um Cão. Chamava-se Veludo;
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos d’um camarada
Na hora da partida. O cão, gemendo,
Não me queria acompanhar por nada!
Enfim – o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o...  o sol nas ondas se abismava...
“Adeus!”– me disse, – e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
“Trata-o bem, verás como o rasteiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que, amigo verdadeiro,
Te console no mundo ermo de amigos”...
Veludo a custo habituou-se à vida,
Que  o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A sua cauda – caminhava errante
À luz da lua – tristemente uivando.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo,
Um envelope fartamente cheio!
Era uma carta. Carta! era um artigo
Contando a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes.
Finalmente, por baixo disso tudo,
Em “nota bene” do melhor cursivo,
Recomendava o pobre do Veludo,
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranqüilo e atento
Me contemplava, e – creia; é verdade –
Vi comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois, lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso,
Movendo a cauda, e adormeceu contente,
Farto d’um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher de um pobre carvoeiro.
E respeitei! “Graças a Deus! já posso
- Dizia eu - viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que a minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E, de cansaço, foi  rolar, dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno,
Que me seguia como miserável
Ladrão, ou como pérfido gatuno.
E resolvi enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz  e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso,
Havia um meio só: era matá-lo.
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto,
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vagamos;
Dava-me forças o torvo pensamento;
Peguei num remo – e com furor remamos.
Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente.
Ele moveu, gemendo, os membros lassos,
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra – entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão – profundo,
E pareceu-me ouvir o atroz lamento,
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas, ao despir dos ombros meus o manto,
Notei – oh! grande dor!– haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata; eu tinha-o unido
Contra o coração, constantemente,
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato
Certo caira além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo
Duas vidas tivera – duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto, senti uivar à minha porta.
Corri, – abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, –  e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh! Deus? – ajoelhado
Junto do cão, estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo; estava enregelado,
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
Fonte:    ARAÚJO, M. Ivonne A. de e CARVALHO, M.Vicentina C. de.
Criança e Poesia. São Paulo: Marambaia

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